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Sexta-feira, 24 de Novembro de 2006

Fala-me de lágrimas

Hoje, ligo-lhe do telefone amarelo cheio de cuspo de letras da boca  e hálito de quem tanto fala. procuro –a sedenta de novidades  porque sei que daquela sua fonte de charcos de águas escondidas nas sombras tem aberturas na língua.

 

 É por isso que lhe ligo!

 

A Maria da Conceição, é uma moça casadoira que vive por trás das cortinas, tem consigo constantemente o seu telemóvel vermelho de luzes azuis intermitentes, não usa outras máquinas para publicar as suas notícias processa-as interiormente em estranhos maquinismos de usos de carne como ficheiros e arquivos, pulsos de ondas acústicas e uma agulha que pica cada letra e liberta da cor a tinta para a palavra.

 

 Maria tem o coração embrulhado num jornal _Aquele que quero ler, hoje.

 

Maria lembra-me uma bailarina com olhos doces  de cabelo repuxado e amarrado na música de piano que zomba do tempo e todo o tempo é um arrepio quando falo com ela.

 

Hoje, fala-me de  lágrimas -digo-lhe!

 

 Pergunto como está vestida, ela não responde logo, primeiro respira fundo como se algo muito atrasado saltasse dos seus arquivos secretos aqueles que nunca se leram a ninguém! E finalmente decide dizer que está vestida de branco como quando tinha 9 anos e continua sôfrega com voz de nevoeiro e nas pausas de chuva começa a falar da sua infância.

Pelo tema que escolheu para me contar vou ter tempo para  limpar as  manchas antigas e encardidas do meu telefone.

Não preciso do bloco branco e de canetas para gravar as notícias que vou ouvir de Maria, limito-me a ligar o  vídeo  e as imagens  mudam conforme o que ouço; sem ritmos certos, os meus olhos seguem atentos nos espaços castanhos que, por vezes, param de espanto ou abrem-se  como a uma grande boca.

 

-Fui violada quando tinha 9 anos - disse ela - dormia num quarto com as minhas  irmãs mais velhas. mais tarde contaram-me que também elas tiveram a minha idade e os mesmos pesadelos.

 

-não me faças muitas perguntas, por favor - disse docemente Maria quando me mexi na outra linha.

 

-julgava ser assim em todos os lares _ depois de uma breve pausa, continua_ sítios, casas, ou como os animais que costumava ver a brincar e a cheirarem-se em liberdade, a copularem nos campos verdes dos fundos da minha casa como os gatos ou como os leões na selva_ eu pensava que a natureza era toda igual só mais tarde soube que não!

 

Mais uma vez  Maria parou de falar!

 

Aproveito para verificar a bateria do vídeo que agora rola  em silêncio a fita de um filme inédito escrito à muitos anos nas paredes do passado.

 

Com curiosidade de saber o resto do filme e, na demora de Maria que, entretanto, parecia ter tapado o bocal , enrolo os dedos nos caracóis da linha do meu telefone imaginando puxar a voz no telemóvel de Maria.

 

O meu silêncio espreita a sua voz que não tardou em aparecer com vestígios de ranho mas mais recomposta e não fosse ela uma boa actriz, como tal, arranja-se ao seu papel e entra em cena..

 

 

 Lentamente e baixinho à terra o som surge desenvolvendo a notícia.

 

Um dia à noite quando a madrugada beija as árvores e os mochos piam as horas. A puberdade acorda no quarto ao lado, sorrateira  e bandida, avança pelo pequeno corredor que separa as diferentes naturezas e  passo a passo,  flutuam sonhos descalços debaixo dos meus cobertores só os consigo ver pela frincha da persiana onde passa a chama da lua com os sonhos  predadores que tocam o meu sexo .

 

Maria faz outra pausa. Sento-me na cadeira acolchoada onde me arranjo à melhor posição e  trinco pipocas dos segundos.

Esperando o final do intervalo, bebo Porto velho no copo da paciência.

 

 

Antes -continua Maria - sonhara com fadas azuis sentadas junto aos contentes rios, apanhavam flores para encher as minhas almofadas da cama e eu dormia com os cheiros de rosas sem espinhos.

 

Antes _eu escovara o cabelo comprido e pretos da minha boneca Úrsula com pentes de olhos.

 

Antes eu não reparara que por baixo da roupa curta e branca de uma bailarina ouvia-se um corpo, um fruto de pouca pelagem negra com dois gomos vermelhos _ ela era uma menina!

 

Guardava a minha boneca numa caixinha que pensara ser mágica, porque, de vez em quando, quando  eu a abria, ouvia uma música de piano, tão linda que me fazia rodopiar.

 

Mais um silêncio da Maria  mais um arranjo na cadeira e mais uma golada de Porto!

 

Retoma a voz ao telemóvel fervente e canceroso.

 

 Naquela noite, da caixa de música,  em vez da Úrsula , sai  um feiticeiro  muito feio e despido de batas de meias luas, adorna a cabeça com um chapéu bicudo e cheio de estrelas que reluzem como os seus olhos maléficos. Ele, sem dar gargalhadas, calado no sussurro, devagar acaricia a  sua varinha mágica entesada,, para cima e para baixo,  à medida que a sua mão aperta os gemidos aos astros do quarto. Tem ao mesmo tempo, no sexo do meu triste sonho a outra mão, com dedos de bruxo nos meus gomos vermelhos , são abertos os portões do pequeno buraco.

 

grito NÃO.

 

Durmo ou estou acordada?

 

Desligo o telefone!

 

Respiro e penso!

 

 - Ninguém conta histórias como a Maria Conceição.

 

 

©Ana Mª Costa

 

24 de Novembro 2006

 

 


escrito por A.fe às 17:14

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De Amaral a 25 de Novembro de 2006 às 11:11
Posso dizer-te que fiquei preso da primeira à última palavra deste belo conto.
A suavidade da tua pena percorreu cada gesto da menina, da mulher, do ser humano...
No pormenor, completado pela intenção, partilhei o sentir e a dor e a revolta e cada gemido da vida sussurrado nas linhas dum telefone vermelho...
Parabéns porque merece!


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