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Hoje, ligo-lhe do telefone amarelo cheio de cuspo de letras da boca e hálito de quem tanto fala. procuro –a sedenta de novidades porque sei que daquela sua fonte de charcos de águas escondidas nas sombras tem aberturas na língua.
É por isso que lhe ligo!
A Maria da Conceição, é uma moça casadoira que vive por trás das cortinas, tem consigo constantemente o seu telemóvel vermelho de luzes azuis intermitentes, não usa outras máquinas para publicar as suas notícias processa-as interiormente em estranhos maquinismos de usos de carne como ficheiros e arquivos, pulsos de ondas acústicas e uma agulha que pica cada letra e liberta da cor a tinta para a palavra.
Maria tem o coração embrulhado num jornal _Aquele que quero ler, hoje.
Maria lembra-me uma bailarina com olhos doces de cabelo repuxado e amarrado na música de piano que zomba do tempo e todo o tempo é um arrepio quando falo com ela.
Hoje, fala-me de lágrimas -digo-lhe!
Pergunto como está vestida, ela não responde logo, primeiro respira fundo como se algo muito atrasado saltasse dos seus arquivos secretos aqueles que nunca se leram a ninguém! E finalmente decide dizer que está vestida de branco como quando tinha 9 anos e continua sôfrega com voz de nevoeiro e nas pausas de chuva começa a falar da sua infância.
Pelo tema que escolheu para me contar vou ter tempo para limpar as manchas antigas e encardidas do meu telefone.
Não preciso do bloco branco e de canetas para gravar as notícias que vou ouvir de Maria, limito-me a ligar o vídeo e as imagens mudam conforme o que ouço; sem ritmos certos, os meus olhos seguem atentos nos espaços castanhos que, por vezes, param de espanto ou abrem-se como a uma grande boca.
-Fui violada quando tinha 9 anos - disse ela - dormia num quarto com as minhas irmãs mais velhas. mais tarde contaram-me que também elas tiveram a minha idade e os mesmos pesadelos.
-não me faças muitas perguntas, por favor - disse docemente Maria quando me mexi na outra linha.
-julgava ser assim em todos os lares _ depois de uma breve pausa, continua_ sítios, casas, ou como os animais que costumava ver a brincar e a cheirarem-se em liberdade, a copularem nos campos verdes dos fundos da minha casa como os gatos ou como os leões na selva_ eu pensava que a natureza era toda igual só mais tarde soube que não!
Mais uma vez Maria parou de falar!
Aproveito para verificar a bateria do vídeo que agora rola em silêncio a fita de um filme inédito escrito à muitos anos nas paredes do passado.
Com curiosidade de saber o resto do filme e, na demora de Maria que, entretanto, parecia ter tapado o bocal , enrolo os dedos nos caracóis da linha do meu telefone imaginando puxar a voz no telemóvel de Maria.
O meu silêncio espreita a sua voz que não tardou em aparecer com vestígios de ranho mas mais recomposta e não fosse ela uma boa actriz, como tal, arranja-se ao seu papel e entra em cena..
Lentamente e baixinho à terra o som surge desenvolvendo a notícia.
Um dia à noite quando a madrugada beija as árvores e os mochos piam as horas. A puberdade acorda no quarto ao lado, sorrateira e bandida, avança pelo pequeno corredor que separa as diferentes naturezas e passo a passo, flutuam sonhos descalços debaixo dos meus cobertores só os consigo ver pela frincha da persiana onde passa a chama da lua com os sonhos predadores que tocam o meu sexo .
Maria faz outra pausa. Sento-me na cadeira acolchoada onde me arranjo à melhor posição e trinco pipocas dos segundos.
Esperando o final do intervalo, bebo Porto velho no copo da paciência.
Antes -continua Maria - sonhara com fadas azuis sentadas junto aos contentes rios, apanhavam flores para encher as minhas almofadas da cama e eu dormia com os cheiros de rosas sem espinhos.
Antes _eu escovara o cabelo comprido e pretos da minha boneca Úrsula com pentes de olhos.
Antes eu não reparara que por baixo da roupa curta e branca de uma bailarina ouvia-se um corpo, um fruto de pouca pelagem negra com dois gomos vermelhos _ ela era uma menina!
Guardava a minha boneca numa caixinha que pensara ser mágica, porque, de vez em quando, quando eu a abria, ouvia uma música de piano, tão linda que me fazia rodopiar.
Mais um silêncio da Maria mais um arranjo na cadeira e mais uma golada de Porto!
Retoma a voz ao telemóvel fervente e canceroso.
Naquela noite, da caixa de música, em vez da Úrsula , sai um feiticeiro muito feio e despido de batas de meias luas, adorna a cabeça com um chapéu bicudo e cheio de estrelas que reluzem como os seus olhos maléficos. Ele, sem dar gargalhadas, calado no sussurro, devagar acaricia a sua varinha mágica entesada,, para cima e para baixo, à medida que a sua mão aperta os gemidos aos astros do quarto. Tem ao mesmo tempo, no sexo do meu triste sonho a outra mão, com dedos de bruxo nos meus gomos vermelhos , são abertos os portões do pequeno buraco.
grito NÃO.
Durmo ou estou acordada?
Desligo o telefone!
Respiro e penso!
- Ninguém conta histórias como a Maria Conceição.
©Ana Mª Costa
24 de Novembro 2006